Conforme o combinado, ele chegou naquela rua ao cair da tarde, as testemunhas já o aguardavam, eram dois manés que eram facilmente manipulados pelos líderes do grupo.
Ele ainda não entendia como havia caído nesse embuste, talvez por ser novo na cidade, talvez porque aquele grupinho gostasse mesmo de sacanear com todos, vai saber.
O fato é que ele havia sido desafiado, teria que passar a noite, sozinho, naquela casa abandonada, do lado de fora, na rua, duas testemunhas, escolhidas pelo grupo, ficariam num carro, para garantir que não houvesse trapaça dele.
“humpf, como se eu fosse desleal!” pensou.
Ele olhou para a casa, talvez no passado ela fosse bonita, pelo menos porte ela tinha, era um sobrado, com janelas largas, pena que seus vidros estavam quebrados, o pé direito era alto, a pintura das paredes estava descascando, evidenciando o abandono e o mau trato do tempo.
Segundo boatos da cidade, a família que ali morava mudou-se para a Capital, deixando um caseiro cuidando de sua manutenção, porém este caseiro sumiu misteriosamente depois de uma noite sem lua, durante o verão, ninguém na cidade teve coragem de entrar na casa, para ver se o coitado havia morrido lá dentro ou não.
Mas não adiantava nada ficar pensando nessas coisas, isso só iria atrapalha-lo se ele realmente queria vencer o desafio e pernoitar ali.
Chegou, cumprimentou os dois babacas com um gesto silencioso e aguardou o momento de entrar na casa, afinal a aposta era que ele deveria ficar ali do pôr do sol até o raiar do dia seguinte.
Enquanto aguardava o sol descer para a linha do horizonte, observou discretamente o carro onde os caras ficariam, no banco traseiro havia um cooler cheio de gelo e bebidas, nada para comer, pelo menos nada a vista, será que eles ficariam sozinhos ou esperariam por companhia? Bem, isso não lhe interessava, afinal ele não fora convidado para essa festinha mesmo.
No momento em que os últimos lampejos do sol sumiam no firmamento, ele apoiou as mãos sobre o muro baixo da propriedade e, com um impulso felino, saltou para dentro do jardim, uma caminhada rápida e estava na porta, que parecia apodrecida.
Uma forçada rápida na maçaneta e, pronto, ele estava na sala vazia.
A cada passo o assoalho rangia, dando uma sensação de que estava sendo vigiado, mas só podia ser imaginação sua. Afinal ele estava sozinho ali.
Revolvendo sua mochila, ele sacou dali uma caixa de fósforos e um pacote de velas, ele precisava de luz por dois motivos, primeiro para poder enxergar por onde andava, para não tropeçar em nenhum buraco no chão, segundo para provar que estava ali, ele precisava deixar algum tipo de sinal visível para que as testemunhas soubessem que ele ainda estava lá dentro.
Observou a sala, toda empoeirada, com teias de aranha pendendo do teto, cheiro de mofo e velharia, bem o que esperava de um lugar abandonado, pensou em explorar a casa, mas desistiu, já que a luz da vela precisava ficar próxima à janela da sala, para que os otários a vissem do carro, se bem que daqui a pouco eles estariam muito bêbados para se preocupar com isso.
De qualquer forma era mais prudente evitar se deslocar pela casa, ela estava muito deteriorada, com isso um acidente poderia acontecer caso ele desse um passo em falso.
…
Como ele poderia ter sido tão descuidado, a bateria de seu celular descarregou, ele não tinha relógio, não sabia quanto tempo estava ali, meia hora, meia noite, não sabia precisar, estava ali desde o cair da noite, mesmo lá fora já não ouvia mais os idiotas falarem alto, talvez tivessem dormido de cara cheia.
Olhando pela janela podia ver que o céu estava escuro, não havia lua, será que era período de lua nova, ele não se lembrava de ter visto lua alguma durante o dia, muito estranho aquilo tudo.
Pelo menos o silêncio da noite o envolvia e acalentava, mas espere aí, o que é isso? Esse barulho leve, algo como se alguém tivesse arranhando uma tábua ou porta?
Ele olha ao redor, usando sua sexta ou sétima vela, ilumina os cantos escuros, não vê nada.
Isso começa a angustia-lo, assusta-lo, de onde vem esse barulho e, o pior, quem ou o que está fazendo esse som aterrador?
Ele começa a sentir seu organismo acusar o terror que chega, taquicardia, arrepios pelo corpo, suor, boca seca, todos aqueles sintomas que ele sentia quando assistia os filmes de Stephen King, como ele podia estar sendo tão bobo e se deixando impressionar com um barulho de nada?
Diante do impasse, sair correndo e perder a aposta, ou ficar e mesmo com toda essa tensão, ele optou pela segunda alternativa, mas não ficaria parado ali, tremendo de medo, não, ele iria fazer algo, mesmo que se arrependesse depois.
Imediatamente ele começou a configurar um plano, esquadrinhar a casa atrás do barulho, se fosse algo que lhe causasse risco ele não ficaria ali esperando, passivamente, não, ele assumiria o risco e iria atrás do barulho e o confrontaria, pouco importava se fosse para os cômodos de onde a vela não pudesse ser vista pelas testemunhas.
Porém ele não iria sair a esmo, isso seria burrice, ele iria fazer a coisa dentro de uma racionalidade, explorar cômodo por cômodo, de forma metódica, para ter certeza que aquele barulho era só produto de sua imaginação.
Assim ele subiu as escadas, pé ante pé, com toda a cautela possível para não fazer os degraus rangerem e chamar atenção, afinal, o barulho poderia ser fruto de sua imaginação, mas e se não fosse?
Em cada peça da casa onde entrava o cenário era muito parecido, os poucos móveis existentes quebrados, manchados pelo tempo, muita poeira e mofo, teias de aranha e só.
Esse resultado lhe causava duas sensações, alívio por não encontrar nada e irritação por não encontrar nada, afinal ele já andara por todo o pavimento superior e nenhum sinal da origem do barulho, restava então descer os degraus cuidadosamente e ver os cômodos que faltavam.
Além da sala ampla, onde ele começara a noite, deveria haver uma cozinha e mais alguns cômodos, a casa era muito grande para ter só a sala e a cozinha no andar térreo.
Novamente ele sentiu falta de seu celular, quanto tempo ele estava nessa empreitada? Quanto tempo ele ficara no andar superior do sobrado? Não sabia dizer, assim como também não sabia dizer quanto tempo faltava para o raiar do sol.
Pelo menos com essa exploração o tempo estava sendo ocupado, assim o sono era expulso e ele teria uma pequena chance de conhecer o sobrado para contar depois.
Portas, corredores, armários e nada, ele já estava desistindo da busca quando começou a ouvir algo mais do que o arranhar de madeira, começou a ouvir um lamento leve, como um choro, algo que resultou em imediato arrepio na espinha.
Todo esse barulho só poderia vir daquela porta, era a única por onde ele ainda não havia passado.
Muito vagarosamente, quase que se arrastando, ele começou a se encaminhar para seu objetivo, tentando identificar o que era aquele som, suspiro, respiração, lamento, choro, ele não sabia dizer.
Ele ficou parado em frente à porta por uma eternidade, não sabia dizer, ficou apenas segurando a própria respiração e tentando escutar algo que o ajudasse a entender o que se passava dentro da sala, mas nada ajudou, ele olhou ao redor, procurando algo que pudesse usar como arma, um pedaço de cadeira, um cabo de vassoura esquecido, mas nada, pelo menos nada que pudesse ser usado, ele teria que entrar lá de mãos vazias, apenas com a vela na mão.
Não havia mais para onde fugir, ele teria que entrar lá se quisesse acabar com o mistério, ou então a única alternativa que lhe restava seria sair correndo da casa, perder a aposta e ser chamado de frangote para o resto de sua vida.
Suando copiosamente ele levou cuidadosamente a sua mão até a maçaneta empoeirada, ficou em dúvida de como agir, abrir a porta devagar e com cuidado, dando chances a o que quer que esteja ali de se defender, ou abrir de uma vez, bem rápido, surpreendendo o que quer que fosse o autor daquele barulho.
Antes de pensar muito, abriu e empurrou a porta de uma vez, ao se lançar pela fresta ouviu um grito fino e congelante, ele quase virou e saiu correndo, mas a luz da vela clareou o ambiente, o suficiente para que ele visse três ou quatro pares de pequenos reflexos brilhantes no canto da sala, sob uma cadeira com estofado rasgado, ali estava a origem do barulho, ele teve vontade de rir, de nervosismo, de alívio, de felicidade até.
Uma família de gatos vira-latas havia se instalado na casa e a mãe estava amamentando e cuidando dos filhotes, esse era o terrível barulho que o assustara tanto naquela noite.
Mais aliviado, ele olhou pela janela e viu que o céu clareava e mais alguns minutos ele poderia sair dali, com uma bela história para contar e muitas risadas para dar.
Entre agradecido e indignado, ele foi até os felinos, acariciou a cabeça da mãe e voltou para a sala, onde esperou o primeiro brilho do sol para sair dali e provar que não era medroso.
Depois disso, quem sabe ele pensasse mais antes de aceitar outro desafio besta como esse.
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