Eis o segundo texto retirado do blog Cem Homens, de Letícia Fernández.
Se esta divulgação conscientizar uma pessoa já está valendo.
NÃO É NEGLIGÊNCIA, IMPRUDÊNCIA, IMPERÍCIA. É DOLO - parte 2
Acompanhamos as notícias que saíram depois do acidente. Foi aí que descobrimos que o voo duplo era proibido, em um box num jornal que não me lembro mais qual é. Fiquei revoltada. Até então tratávamos o assunto como um acidente, uma fatalidade, algo inerente ao risco de voar de asa delta ou parapente.
Assim como a maioria das pessoas faz. Fatalidade.
Só que quando você sabe que a atividade é ilegal e que, apesar disso, é feita livremente e muitas vezes com o apoio de órgãos públicos (como a RioTur), o sentimento de revolta é inevitável.
A Ana, assim como inúmeras pessoas, só voaram porque achavam que tudo corria dentro da lei. Em uma decisão familiar, decidimos que não deixaríamos que a atividade continuasse acontecendo. E o melhor jeito para isso era entrar com uma ação judicial.
A BUSCA DO ADVOGADO
De volta ao Rio, procurei o advogado que havia sido entrevistado pelo jornal e que havia dito que o papel assinado pela minha irmã não tinha qualquer valor jurídico. Entreguei todos os documentos solicitados por ele.
Nesse ínterim um corretor de seguros me procurou. Disse que atendia diversos pilotos da ABVL e que eles, só os pilotos, tinham seguro. Eu não fiz a conexão imediatamente, mas depois isso se tornou óbvio: uma seguradora não poderia englobar o passageiro, simplesmente porque a atividade é ilegal!!!
Mas olha como o corretor foi bonzinho: como ele atendia muitos pilotos, a seguradora havia resolvido “fazer um agrado” e me pagar uma indenização. De dez mil reais. DEZ MIL REAIS (nota: tentaram devolver o dinheiro do voo ao irmão da Priscila, a moça que morreu domingo. Sério? Só pode ser brincadeira!).
Eu não aceitei, evidentemente, e tive de ouvir do advogado que não teríamos nada a fazer. Não me dei por satisfeita e procurei Maria Celina Bodin de Moraes, minha ex-professora de Responsabilidade Civil na PUC, e pedi uma indicação.
Ela pensou por alguns dias e disse que teria que indicar um advogado que ela soubesse que seria correto e apaixonado pela causa. Ela acertou em cheio e me disse para procurar Flavio Müller, que também havia sido meu professor na faculdade.
Flavio é corretíssimo, honesto, cordial, interessado e nos trata como se fôssemos da família. Ele abraçou fortemente a causa, e entramos com uma ação judicial indenizatória e uma ação civil pública para interrupção dos voos enquanto não fossem regulamentados.
Além disso, enviou consultas e questionamentos a órgãos como RioTur, ANAC, Prefeitura do Rio, fazendo a denúncia de que os voos continuavam acontecendo e pedindo providências.
O PROCESSO JUDICIAL
Meus pais são autores de uma ação civil indenizatória contra a ABVL e a AVLRJ.
Ainda na fase de instrução – isto é, quando coletávamos provas e depoimentos de testemunhas -, o então presidente da ABVL, Bruno Menescal (muito conhecido no meio), disse em juízo que as pessoas voavam porque queriam ser pilotos. Em juízo.
Disse, também, que a taxa paga diretamente na sede da associação (na época do depoimento, era de R$ 10) era para a manutenção do banheiro. Do BANHEIRO.
Eles quiseram se desvencilhar de qualquer culpa no caso. Afinal, o Valtinho tinha morrido mesmo, então não poderiam culpar o piloto, como estão fazendo agora no caso da nutricionista baiana.
Em uma das contestações, os advogados das associações disseram que nós queríamos dinheiro. Foram muito cruéis, o que já sabíamos que ia acontecer, mas me parece totalmente antiética tal suposição. Nada jamais trará minha irmã de volta, nenhum dinheiro no mundo. O que queríamos e continuamos querendo é que os responsáveis sejam responsabilizados. Assim como você, motorista, é punido caso se envolva num acidente de trânsito.
Mesmo mentindo em juízo e alegando essas coisas absurdas, as associações foram condenadas em duas instâncias. O processo ainda não transitou em julgado, pois ainda cabem alguns recursos de caráter meramente protelatório.
Copio aqui alguns trechos da sentença que julgo importantes e não são cheios de juridiquês (os grifos são meus):
Devidamente citadas, as associações rés apresentaram contestação às fls. 405/424, acrescida dos documentos de fls. 425/516, sustentando as preliminares de ilegitimidade passiva e impossibilidade jurídica do pedido. No mérito, sustentam a inexistência de contrato de transporte, a relação exclusiva da vítima com o falecido piloto da asa-delta, a existência de um termo de responsabilidade que as isentaria dos riscos da atividade, a natureza de ‘atividade de risco’ do vôo livre que transferiria à vítima a culpa pelo ocorrido, a incidência de legislação que determina que o vôo de asa-delta corre por conta e risco do participante, a impossibilidade de desconsideração da personalidade jurídica de seus representantes, a inaplicabilidade do CDC à hipótese dos autos ao fundamento de que ‘a única relação estabelecida entre a ABVL e a AVLRJ e a falecida filha dos autores foi a de disponibilização de toaletes’, a inexistência de ato ilícito, de negligência e de danos morais indenizáveis, a existência de responsabilidade exclusiva do piloto, da União e concorrente da vítima.
Quando eles recorreram da primeira sentença, favorável aos meus pais, alegaram o seguinte (todos os trechos foram retirados do acórdão julgado em dezembro de 2011):
Para tanto, sustentam a inexistência de relação de consumo entre os pilotos associados e as associações, bem assim entre as associações e os interessados, que contratam os pilotos para a prática de voo livre, além da ausência de responsabilidade objetiva, por culpa exclusiva de terceiro.
Aqui eles tentam tirar o deles da reta e colocarem o do Valtinho, que… morreu no acidente!
O relatório da desembargadora Denise Levy Tredler, no entando, contraria todas as pretensões das associações (os grifos, de novo, são meus):
Isto porque, após detida análise dos autos, verifica-se que tanto as associações apelantes, como os pilotos, auferem proveito econômico em decorrência da prática do voo duplo de asa delta, como atividade remunerada, e como tal enquadram-se no conceito de fornecedoras do serviço que disponibilizam, mediante o pagamento do preço que estipulam e a assinatura de termo de responsabilidade pelo interessado.
(…)
O conteúdo das declarações constantes nos documentos de fls. 240/241 confirma a tese no sentido de que as associações atuam como intermediárias na atividade de voo duplo remunerado, auferindo proveito econômico, mediante a cobrança de verba, supostamente destinada à manutenção de suas instalações.
(…)
Trata-se, portanto, de cobrança diretamente vinculada à prática da atividade de voo duplo remunerada. Tanto que visitantes e acompanhantes dos interessados na prática do esporte não precisam pagar a referida quantia, ainda que configurem potenciais utilizadores de banheiros e outras instalações da rampa da Pedra Bonita. Ademais, não é razoável supor, de plano, que todos aqueles que se dispõem a praticar o voo duplo, irão, necessariamente, usar o banheiro.
Releva salientar não ser crível que a cobrança individual de uma taxa, que em um fim de semana pode totalizar R$1.700,00 (fl. 647), e no final de um ano R$230.000,00 (fl. 649), de acordo com o teor de reportagem jornalística divulgada em jornal de grande circulação, seja, apenas, destinada ao custeio do uso de banheiros e demais instalações da rampa, ou mesmo das associações.
(…)
Conforme comprovado nos autos, as associações se apresentam aos consumidores como sendo as responsáveis pela administração e o agenciamento da atividade de voo livre na região do acidente, como comprova a declaração de fl. 241, sendo obrigatória a vinculação de todos os instrutores, que realizam a exploração comercial da atividade, aos quadros de associados das apelantes, o que é apresentado ao mercado como fator de segurança a encorajar a sua contratação, funcionando como verdadeira publicidade do serviço exposto à aquisição pelos consumidores, conforme demonstra, igualmente, o documento de fl. 243.
(…)
É certo, ademais, que as associações mantêm sede única nas proximidades do local do pouso das asas deltas e os consumidores não procuram diretamente os pilotos, mas a referida sede, onde são encaminhados aos pilotos disponíveis, apenas após realizarem o pagamento da “taxa de manutenção”.
Contudo, resta evidente que a remuneração percebida pelas apelantes não se limita ao valor que lhes é diretamente pago. Muito mais relevante é a remuneração indireta que extraem da atividade explorada, haja vista sustentarem que a remuneração de cada voo é paga diretamente aos instrutores, que, para explorarem comercialmente a atividade, devem obrigatoriamente a elas estar associados, pagando-lhes mensalidades, como informado nos depoimentos de seus próprios representantes legais.
(…)
Releva notar, ainda, ser inconcebível acatar a tese no sentido de que todos aqueles que praticam voo duplo o fazem para fins de instrução, por pretenderem se tornar pilotos, sobretudo quando grande parte dos interessados são turistas.
(…)
Releva observar, ademais, que não se pode afirmar que a referida exclusão decorre de fato da própria vítima, Ana Rosa, que, por sua espontânea vontade, assinara um Termo de Exclusão de Responsabilidade. Isto porque, nos termos do inciso I, do art. 51, do CDC “são nulas, de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que impossibilitem, exonerem ou atenuem a responsabilidade do fornecedor por vícios de qualquer natureza dos produtos e serviços ou impliquem renúncia ou disposição de direitos”.
(…)
Releva notar, outrossim, que o acidente ocorreu em decorrência da deficiente manutenção do equipamento e da falta de fiscalização deste, que deveria ter sido realizada pelas apelantes.
As associações foram condenadas a pagar R$ 255 mil aos meus pais. Como disse, ainda não houve trânsito em julgado da ação, então eles podem recorrer ainda.
É importante notar que tudo isso que copiei acima foi COMPROVADO nos autos do processo, com documentação, depoimentos e etc.
Ainda assim, mesmo com a ação ter sido iniciada em 2004, isto é, há sete anos, eles continuam agindo exatamente da mesma forma. Isso é negligência? Imprudência? Imperícia? Não, pra mim isso é uma conduta dolosa. E falo mais sobre isso na terceira e última parte desse post.
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